Passemos pois ao momento mais trágico da corrida andaluza, o da "suerte de matar". Admitamos que o touro foi lidado consoante as suas qualidades (bravura, "nobreza", "fundo" ou seja capacidade para "durar", etc.) e as qualidades do toureiro (coragem, "toreria", beleza dos passes e da sua ligação, etc.). Chega o momento de dar a morte ao touro: o que poderíamos superficialmente considerar como a suprema violência infligida ao animal. O toureiro dispõe o touro segundo as regras da arte, perfila-se e desfere a estocada. É muito frequente que a colocação do golpe falhe, porque a lâmina encontra um osso e "pincha", ou seja, pica, mas não penetra: protestos. Esse falhanço obriga o toureiro a repetir os gestos. A nova tentativa pode falhar, e os protestos tornam-se mais intensos. Quando por fim a estocada é bem executada, os aplausos surgem, mas algo falta: o entusiasmo, a aprovação sem sombras. De facto, após uma faena de grande sucesso, corajosa, bela, longa, ligada, o falhanço da estocada acarreta quase sempre a perda dos troféus aos quais a faena tinha dado direito. Qual a importância deste facto, facilmente observável porque muito frequente? A "punição" do toureiro pelo público (logo acompanhado pela presidência), sob a forma da recusa do troféu (por exemplo a ou as orelhas ), indica claramente o que o público quer ver que é uma morte dada de maneira fulminante, instantânea, "limpa"). Mais interessante ainda, manifesta-se o que ele não quer ver: o animal a ser objecto de tentativas de morte falhadas, com um penoso prolongamento do acto final*. A perda dos troféus eventualmente merecidos pela faena é acompanhada por protestos, assobios, gritos. O público quer que as coisas sejam feitas "como deve ser" e não de maneira grosseira, impondo ao touro um sofrimento que não entra no que é necessário à lide e ao seu desfecho, antes a degrada. Prolonguemos a observação cuidadosa das reacções do público que exprimem com firmeza a exigência da obediência às regras (e confirmam tanto a existência destas como o consenso de que são objecto). Quando a estocada falhou o seu objectivo, que é dar uma morte quase instantânea ao touro, e se este, não caindo por terra, continua de pé, lutando contra a morte, é absolutamente consensual que o toureiro deve recorrer ao "descabello" para abreviar tanto quanto possível a agonia. Com uma espada especial, o toureiro secciona a medula do touro por altura das primeiras vértebras cervicais; ou pelo menos, tenta fazê-lo. Mais uma vez, o ou os falhanços quando ocorrem, ao prolongarem a agonia do touro, são fortemente sancionados. Se porventura a estocada foi bem sucedida mas como dissemos o touro não cai (o troféu ainda não está perdido), falhanços sucessivos no "descabello" desencadeiam os protestos do público e podem retirar a legitimidade da recompensa, como observei várias vezes. A coerência das reacções dos aficionados é absolutamente notável. Por outro lado, se o touro caiu após a estocada de morte, mas continua com sinais vitais (por exemplo deitado, mas de cabeça erguida), intervém o "puntillero", homem da quadrilha do toureiro (nunca o toureiro), com um punhal especial ("puntilla"), para seccionar a medula. Mas esse gesto é, também ele, sujeito a um zeloso escrutínio: o primeiro gesto deve ser decisivo e se o não é, a repetição e pior ainda as repetições se as houver, são copiosamente assobiadas: o público não quer charcutaria, quer "toreria", o público não quer ver um homem a golpear repetidamente o cerebelo dum boi, quer que a agonia do animal termine de maneira imediata. O "descabello" dum touro caído, ferido de morte, não é um acto banal: é um golpe de misericórdia.
O que verdadeiramente interessa o público dos aficionados é a morte do touro, não a sua agonia. "O touro deve morrer", como sublinhava o filósofo Francis Wolff: mas não de qualquer maneira.
A regulamentação extremamente detalhada da maneira de executar os gestos, e a vigilância sem falha do público, tornam a corrida de morte no oposto da chacina: um acto ritual que impõe (porque se impõe) respeito. Quando observamos a maneira como são interpretadas e aplicadas durante a corrida as regras da tauromaquia (legais e escritas ou tradicionais e tácitas), apesar das diferenças de pontos de vista (público, toureiros, ganadeiros, autoridades) somos obrigados a reconhecer que não é, nem seria possível a simples aplicação mecânica de regras. A complexa negociação da avaliação do que convém, caso a caso, instante a instante, só pode efectivar-se como o observamos porque as práticas tauromáquicas na arena estão inseridas numa cultura partilhada: o amor dos touros e do seu combate.
É esta complexa Cultura que mantém dentro dos limites a violência humana. Quantas vezes os toureiros, em faenas difíceis, ou no momento da colhida sempre traumática, não desejaram despedaçar o animal que o fere? Quantas vezes nós próprios não somos tomados pelo desejo que o touro seja de imediato morto, sem lhe dar mais oportunidades de matar o homem? Pois bem, o que isto significa é que Hybris está dentro de todos nós, a violência habita-nos a todos. Mas outra força se opõe, a Diké, a Lei, a Justiça, a Moderação. E claramente a tauromaquia torna visível essa tensão entre o desejo de destruição sem limites e o desejo de beleza, de moderação, de empatia com o Homem... e com o Touro. Heidegger afirmava que essa Lei, a Diké dos Gregos, é o rosto da Fatalidade. Porquê? Porque a condição humana só se cumpre reconhecendo os seus limites. E os aficionados, quer todos eles se deem conta quer não, têm o privilégio de participar num ritual em que as duas forças se confrontam perante os olhos (e nos corações) de todos. Nesse ritual ganha a Diké, justiça e moderação: porque nem tudo nos é permitido. A tauromaquia não tem que ser tolerada: ela é necessária para o equilíbrio da nossa civilização.
* Não é só o público que sofre com o falhanço das tentativas de estocada e/ou descabello: era preciso ver a expressão agoniada do ganadeiro António Miura, escondendo a cara nas mãos, quando na última corrida de San Isidro 2016 o seu touro não pôde ser morto como deve ser e as tentativas se multiplicaram: empatia profunda com o animal, e também com o homem em grande perigo perante esse touro difícil.
Manolete - Estocada / Alfredo David
JRdS / Évora 6 de Junho de 2016.