segunda-feira, 6 de junho de 2016

A morte do Touro: Violência e Limite III

Nos bilhetes precedentes examinei a relação entre a Violência e o Limite que se declina nos primeiros momentos da corrida andaluza e comanda a actuação dos participantes. Mais uma vez, os conhecedores encontrarão aqui (salvo erro meu), uma descrição que parecerá banal: é o que "toda a gente "sabe". A minha hipótese é que precisamente nem toda a gente sabe, ou nem toda a gente tomou o tempo e o cuidado necessários para reflectir sobre o que se vê na arena. 
Passemos pois ao momento mais trágico da corrida andaluza, o da "suerte de matar". Admitamos que o touro foi lidado consoante as suas qualidades (bravura, "nobreza", "fundo" ou seja capacidade para "durar", etc.) e as qualidades do toureiro (coragem, "toreria", beleza dos passes e da sua ligação, etc.). Chega o momento de dar a morte ao touro: o que poderíamos superficialmente considerar como a suprema violência infligida ao animal. O toureiro dispõe o touro segundo as regras da arte, perfila-se e desfere a estocada. É muito frequente que a colocação do golpe falhe, porque a lâmina encontra um osso e "pincha", ou seja, pica, mas não penetra: protestos. Esse falhanço obriga o toureiro a repetir os gestos. A nova tentativa pode falhar, e os protestos tornam-se mais intensos. Quando por fim a estocada é bem executada, os aplausos surgem, mas algo falta: o entusiasmo, a aprovação sem sombras. De facto, após uma faena de grande sucesso, corajosa, bela, longa, ligada, o falhanço da estocada acarreta quase sempre a perda dos troféus aos quais a faena tinha dado direito. Qual a importância deste facto, facilmente observável porque muito frequente? A "punição" do toureiro pelo público (logo acompanhado pela presidência), sob a forma da recusa do troféu (por exemplo a ou as orelhas ), indica claramente o que o público quer ver  que é uma morte dada de maneira fulminante, instantânea, "limpa"). Mais interessante ainda, manifesta-se o que ele não quer ver: o animal a ser objecto de tentativas de morte falhadas, com um penoso prolongamento do acto final*. A perda dos troféus eventualmente merecidos pela faena é acompanhada por protestos, assobios, gritos. O público quer que as coisas sejam feitas "como deve ser" e não de maneira grosseira, impondo ao touro um sofrimento que não entra no que é necessário à lide e ao seu desfecho, antes a degrada. Prolonguemos a observação cuidadosa das reacções do público que exprimem com firmeza a exigência da obediência às regras (e confirmam tanto a existência destas como o consenso de que são objecto). Quando a estocada falhou o seu objectivo, que é dar uma morte quase instantânea ao touro, e se este, não caindo por terra, continua de pé, lutando contra a morte, é absolutamente consensual que o toureiro deve recorrer ao "descabello" para abreviar tanto quanto possível a agonia. Com uma espada especial, o toureiro secciona a medula do touro por altura das primeiras vértebras cervicais; ou pelo menos, tenta fazê-lo. Mais uma vez, o ou os falhanços quando ocorrem, ao prolongarem a agonia do touro, são fortemente sancionados. Se porventura a estocada foi bem sucedida mas como dissemos o touro não cai (o troféu ainda não está perdido), falhanços sucessivos no "descabello" desencadeiam os protestos do público e podem retirar a legitimidade da recompensa, como observei várias vezes. A coerência das reacções dos aficionados é absolutamente notável. Por outro lado, se o touro caiu após a estocada de morte, mas continua com sinais vitais (por exemplo deitado, mas de cabeça erguida), intervém o "puntillero", homem da quadrilha do toureiro (nunca o toureiro), com um punhal especial ("puntilla"), para seccionar a medula. Mas esse gesto é, também ele, sujeito a um zeloso escrutínio: o primeiro gesto deve ser decisivo e se o não é, a repetição e pior ainda as repetições se as houver, são copiosamente assobiadas: o público não quer charcutaria, quer "toreria", o público não quer ver um homem a golpear repetidamente o cerebelo dum boi, quer que a agonia do animal termine de maneira imediata. O "descabello" dum touro caído, ferido de morte, não é um acto banal: é um golpe de misericórdia.
O que verdadeiramente interessa o público dos aficionados é a morte do touro, não a sua agonia. "O touro deve morrer", como sublinhava o filósofo Francis Wolff: mas não de qualquer maneira.
A regulamentação extremamente detalhada da maneira de executar os gestos, e a vigilância sem falha do público, tornam a corrida de morte no oposto da chacina: um acto ritual que impõe (porque se impõe) respeito. Quando observamos a maneira como são interpretadas e aplicadas durante a corrida as regras da tauromaquia (legais e escritas ou tradicionais e tácitas), apesar das diferenças de pontos de vista (público, toureiros, ganadeiros, autoridades) somos obrigados a reconhecer que não é, nem seria possível a simples aplicação mecânica de regras. A complexa negociação da avaliação do que convém, caso a caso, instante a instante, só pode efectivar-se como o observamos porque as práticas tauromáquicas na arena estão inseridas numa cultura partilhada: o amor dos touros e do seu combate.
É esta complexa Cultura que mantém dentro dos limites a violência humana. Quantas vezes os toureiros, em faenas difíceis, ou no momento da colhida sempre traumática, não desejaram despedaçar o animal que o fere? Quantas vezes nós próprios não somos tomados pelo desejo que o touro seja de imediato morto, sem lhe dar mais oportunidades de matar o homem? Pois bem, o que isto significa é que Hybris está dentro de todos nós, a violência habita-nos a todos. Mas outra força se opõe, a Diké, a Lei, a Justiça, a Moderação. E claramente a tauromaquia torna visível essa tensão entre o desejo de destruição sem limites e o desejo de beleza, de moderação, de empatia com o Homem... e com o Touro. Heidegger afirmava que essa Lei, a Diké dos Gregos, é o rosto da Fatalidade. Porquê? Porque a condição humana só se cumpre reconhecendo os seus limites. E os aficionados, quer todos eles se deem conta quer não, têm o privilégio de participar num ritual em que as duas forças se confrontam perante os olhos (e nos corações) de todos. Nesse ritual ganha a Diké, justiça e moderação: porque nem tudo nos é permitido. A tauromaquia não tem que ser tolerada: ela é necessária para o equilíbrio da nossa civilização.
 
* Não é só o público que sofre com o falhanço das tentativas de estocada e/ou descabello: era preciso ver a expressão agoniada do ganadeiro António Miura, escondendo a cara nas mãos, quando na última corrida de San Isidro 2016 o seu touro não pôde ser morto como deve ser e as tentativas se multiplicaram: empatia profunda com o animal, e também com o homem em grande perigo perante esse touro difícil.

Manolete - Estocada / Alfredo David
JRdS / Évora 6 de Junho de 2016.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

"Barbárie"? Violência e limite: II - As Regras e o Respeito

 A maior parte do que segue são observações que os conhecedores poderão achar banais. Se as descrevo é porque penso nas pessoas que, aficionadas ou não, tomam essas coisas como perfeitamente "naturais" e óbvias, sem se debruçarem sobre as consequências teóricas que delas convém retirar quanto à natureza do que ocorre nas arenas.
1. A primeira regra estabelece que o touro deve entrar na arena intacto, em excelente condição física, isto é, detentor de todos os seus meios físicos e psíquicos, esses mesmos que o tornam um admirável combatente.
É importante observar as reacções do público perante um animal que apresenta um defeito físico (cegueira dum olho, coxear duma pata, fraqueza das mãos que lhe provoca quedas, etc.) ou comportamental (o animal refugia-se num sítio, recusa investir, etc.). O animal é de imediato reconhecido como não idóneo para a faena; o público exige a sua saída, as autoridades seguem quase sem excepção o juízo do público: não se combate um animal diminuído. (Como já escrevi, o animal admissível para dar entrada no matadouro tem, segundo os regulamentos, apenas que ser capaz de se manter de pé para entrar na manga final do abate).
2. A segunda regra diz respeito à intervenção do picador. Se o touro for aceite, o picador intervém, no momento chamado "castigo", e que é de facto um momento duro para o touro, visto que a vara lhe inflige lesões que podem ser graves (musculares, tendinosas etc.). A justificação que os participantes dão a priori da intervenção do picador é a de que para que o toureio a pé seja possível sem um nível de perigo inaceitável para o toureiro e torne também possível um toureio artístico completo (com todas as suas figuras), o movimento vertical do cachaço e/ou do lombo do touro tem que ser limitado, de modo a que o "derrote", golpe de cornos de baixo para cima e/ou lateral, movimento rapidíssimo, extremamente potente, capaz de levantar em peso um cavalo de seiscentos quilos e o seu cavaleiro, movimento muito perigoso, se torne menos violento. Não podemos então concordar com os anti-taurinos para classificar esta acção (picador) como "bárbara"? Observemos. Existe um consenso moral na praça quanto à legitimidade de princípio da intervenção do picador. Mas essa acção não pode ser feita sem peso nem medida. Pelo contrário, o público protesta ruidosamente assim que o picador realizou o que se pensa (e curiosamente, existe facilmente consenso numa praça de vinte mil espectadores) ser aceitável. Não é só o público que impõe regras ao tercio de varas, porque também o toureiro que vai defrontar o touro intervém em numerosas ocasiões (consoante avalia as capacidades físicas do touro) para restringir a duração e até a intensidade da acção do picador. Por seu turno, o ganadeiro quase sempre presente na lide dos seus touros, admite o tercio de varas, mas protesta vibrantemente assim que estima que o "castigo" é excessivo. O objectivo é entendido por todos os presentes, ao que pude observar em numerosas ocasiões: se a acção da vara é demasiado dura, o animal pode perder a capacidade de combater (investir, "durar"), indispensável para que haja faena e portanto para que o espada possa mostrar o seu toureio. Um animal que perde as mãos, que cai ou abandona rapidamente (se "apaga") na sequência do tercio de varas, é recusado pelo público, e as "autoridades" não têm maneira de se opor ao ditame do público quando este decide que o touro se tornou inválido. O animal é retirado do ruedo. Na maneira de avaliar cada caso concreto (cada "pica") pode haver divergência entre o público e o toureiro. Uma intervenção "pesada"pode ser julgada necessária pelo toureiro e reprovada pelo público: diminui-se artificialmente o perigo, à custa da "verdade" da faena. Mas uma intervenção insuficiente (por ser o toiro cobarde ou o público o exigir), pode pôr o toureiro em grave risco. Foi o que aconteceu há poucos dias (San Isidro, Las Ventas, 31-05) com o terceiro e quarto touros de Saltillo (63 e 45 respectivamente para J. C. Venegas e Sanchez Vara), que recusaram o encontro com o cavalo, procuravam o homem por detrás do engano, perseguiam de longe os toureiros sem capote, e tornaram qualquer lide impossível. Momentos de grande angústia, com touros que poderíamos qualificar de "touros assassinos": nada (nem as bandarilhas pretas) podia substituir a intervenção do picador, mas este nada pôde fazer. O primeiro regressou vivo ao corral, onde terá sido abatido. O segundo, que também recusou o cavalo e procurava o peito do toureiro,  foi morto na praça sem que tenha havido lide nem toureio, tendo Sanchez Vara assumido riscos enormes. Entre o demasiado e o insuficiente, a negociação está presente em todos os numerosos casos que observei: cada touro e cada tercio de varas são avaliados individualmente. Mas nunca se procede de ânimo ligeiro, nem se tolera o excesso sem reprová-lo: o contrário da "barbárie". Falar de "negociação" não é apenas uma imagem. Estão em causa determinações técnicas (capacidades do touro), sociais (os interesses nem sempre coincidentes do público e do toureiro) e éticas (lealdade, verdade da lide). Num contexto complexo e difícil, sempre diferente entre um touro e o seguinte, na quase impossibilidade de fazer uma medição exacta nem da "correcta" colocação da vara, nem da intensidade da intervenção, os participantes (toureiro, presidência, público) manifestam as suas apreciações em cada momento. É da subtil confrontação dessas apreciações que emerge a decisão: prosseguir na acção, suspendê-la de imediato, recusar o touro se este foi invalidado pela intervenção do picador. Tudo, menos o excesso, a violência descontrolada, a loucura destrutiva: a razão, a moderação, a Diké dos Gregos, não a Hybris. Assim funciona a tauromaquia.

Picasso, Museu de Céret, cerâmicas taurinas. Foto JRdS
JRdS / Évora 2 de Junho de 2016.