quinta-feira, 2 de junho de 2016

"Barbárie"? Violência e limite: II - As Regras e o Respeito

 A maior parte do que segue são observações que os conhecedores poderão achar banais. Se as descrevo é porque penso nas pessoas que, aficionadas ou não, tomam essas coisas como perfeitamente "naturais" e óbvias, sem se debruçarem sobre as consequências teóricas que delas convém retirar quanto à natureza do que ocorre nas arenas.
1. A primeira regra estabelece que o touro deve entrar na arena intacto, em excelente condição física, isto é, detentor de todos os seus meios físicos e psíquicos, esses mesmos que o tornam um admirável combatente.
É importante observar as reacções do público perante um animal que apresenta um defeito físico (cegueira dum olho, coxear duma pata, fraqueza das mãos que lhe provoca quedas, etc.) ou comportamental (o animal refugia-se num sítio, recusa investir, etc.). O animal é de imediato reconhecido como não idóneo para a faena; o público exige a sua saída, as autoridades seguem quase sem excepção o juízo do público: não se combate um animal diminuído. (Como já escrevi, o animal admissível para dar entrada no matadouro tem, segundo os regulamentos, apenas que ser capaz de se manter de pé para entrar na manga final do abate).
2. A segunda regra diz respeito à intervenção do picador. Se o touro for aceite, o picador intervém, no momento chamado "castigo", e que é de facto um momento duro para o touro, visto que a vara lhe inflige lesões que podem ser graves (musculares, tendinosas etc.). A justificação que os participantes dão a priori da intervenção do picador é a de que para que o toureio a pé seja possível sem um nível de perigo inaceitável para o toureiro e torne também possível um toureio artístico completo (com todas as suas figuras), o movimento vertical do cachaço e/ou do lombo do touro tem que ser limitado, de modo a que o "derrote", golpe de cornos de baixo para cima e/ou lateral, movimento rapidíssimo, extremamente potente, capaz de levantar em peso um cavalo de seiscentos quilos e o seu cavaleiro, movimento muito perigoso, se torne menos violento. Não podemos então concordar com os anti-taurinos para classificar esta acção (picador) como "bárbara"? Observemos. Existe um consenso moral na praça quanto à legitimidade de princípio da intervenção do picador. Mas essa acção não pode ser feita sem peso nem medida. Pelo contrário, o público protesta ruidosamente assim que o picador realizou o que se pensa (e curiosamente, existe facilmente consenso numa praça de vinte mil espectadores) ser aceitável. Não é só o público que impõe regras ao tercio de varas, porque também o toureiro que vai defrontar o touro intervém em numerosas ocasiões (consoante avalia as capacidades físicas do touro) para restringir a duração e até a intensidade da acção do picador. Por seu turno, o ganadeiro quase sempre presente na lide dos seus touros, admite o tercio de varas, mas protesta vibrantemente assim que estima que o "castigo" é excessivo. O objectivo é entendido por todos os presentes, ao que pude observar em numerosas ocasiões: se a acção da vara é demasiado dura, o animal pode perder a capacidade de combater (investir, "durar"), indispensável para que haja faena e portanto para que o espada possa mostrar o seu toureio. Um animal que perde as mãos, que cai ou abandona rapidamente (se "apaga") na sequência do tercio de varas, é recusado pelo público, e as "autoridades" não têm maneira de se opor ao ditame do público quando este decide que o touro se tornou inválido. O animal é retirado do ruedo. Na maneira de avaliar cada caso concreto (cada "pica") pode haver divergência entre o público e o toureiro. Uma intervenção "pesada"pode ser julgada necessária pelo toureiro e reprovada pelo público: diminui-se artificialmente o perigo, à custa da "verdade" da faena. Mas uma intervenção insuficiente (por ser o toiro cobarde ou o público o exigir), pode pôr o toureiro em grave risco. Foi o que aconteceu há poucos dias (San Isidro, Las Ventas, 31-05) com o terceiro e quarto touros de Saltillo (63 e 45 respectivamente para J. C. Venegas e Sanchez Vara), que recusaram o encontro com o cavalo, procuravam o homem por detrás do engano, perseguiam de longe os toureiros sem capote, e tornaram qualquer lide impossível. Momentos de grande angústia, com touros que poderíamos qualificar de "touros assassinos": nada (nem as bandarilhas pretas) podia substituir a intervenção do picador, mas este nada pôde fazer. O primeiro regressou vivo ao corral, onde terá sido abatido. O segundo, que também recusou o cavalo e procurava o peito do toureiro,  foi morto na praça sem que tenha havido lide nem toureio, tendo Sanchez Vara assumido riscos enormes. Entre o demasiado e o insuficiente, a negociação está presente em todos os numerosos casos que observei: cada touro e cada tercio de varas são avaliados individualmente. Mas nunca se procede de ânimo ligeiro, nem se tolera o excesso sem reprová-lo: o contrário da "barbárie". Falar de "negociação" não é apenas uma imagem. Estão em causa determinações técnicas (capacidades do touro), sociais (os interesses nem sempre coincidentes do público e do toureiro) e éticas (lealdade, verdade da lide). Num contexto complexo e difícil, sempre diferente entre um touro e o seguinte, na quase impossibilidade de fazer uma medição exacta nem da "correcta" colocação da vara, nem da intensidade da intervenção, os participantes (toureiro, presidência, público) manifestam as suas apreciações em cada momento. É da subtil confrontação dessas apreciações que emerge a decisão: prosseguir na acção, suspendê-la de imediato, recusar o touro se este foi invalidado pela intervenção do picador. Tudo, menos o excesso, a violência descontrolada, a loucura destrutiva: a razão, a moderação, a Diké dos Gregos, não a Hybris. Assim funciona a tauromaquia.

Picasso, Museu de Céret, cerâmicas taurinas. Foto JRdS
JRdS / Évora 2 de Junho de 2016.

2 comentários:

  1. Li com prazer o texto, embora toda a tecnicidade relativa à tauromaquia que o mesmo desenrola, sem dúvida pertinente, me ultrapasse.

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  2. Este comentário foi removido por um gestor do blogue.

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