Um ponto deve ficar bem assente: a corrida andaluza envolve actos violentos e sangrentos. Da parte dos humanos, o picador fere o touro com maior ou menor gravidade, os bandarilheiros espetam os seus ferros no cachaço do animal e por fim o matador inflige-lhe uma estocada mortal. Da parte do animal, cujo instinto lutador se exprime sem outros limites que os das suas forças, a violência é inaudita: se porventura, para infelicidade do toureiro, ganha "sentido" e descobre quem se esconde por detrás do engano, o touro só não o mata se não puder atingi-lo e de facto, muitas vezes fere-o gravemente e por vezes mata. Muitas mais vezes, aliás, do que pensam as pessoas que não conhecem essa realidade.
A violência instintiva do touro, mesmo que ela o leve a destroçar inteiramente o corpo do humano, não cabe na definição de "barbárie", como veremos. Mas como definir a violência do toureiro? O que pretendo demonstrar aqui é que essa violência é essencialmente diferente de uma série de actos de barbárie.
Comecemos por esta: o que é que o termo barbárie designa? Tanto na história como na moral ocidental comum e, mais importante, no próprio Direito, a barbárie não é qualquer acto de violência. Mesmo um homicídio pode não ser perpetrado de modo "bárbaro", ou não ser acompanhado de "actos de barbárie", que serão aliás sempre considerados pela Lei e pelos tribunais como pesadas circunstâncias agravantes. Não será preciso evocar de modo concreto o que são tais actos (mutilações, profanações, etc.), para nos entendermos. A barbárie é sempre uma transgressão dos limites, e a própria morte dada a um ser humano pode ser menos chocante que os actos de violência que atiram o seu autor para o domínio da loucura, da perversão radical ou de ambas as coisas e o tornam mais perigoso ainda para a sociedade do que o autor dum "simples" homicídio. Em resumo, desde a mais alta antiguidade, a "barbárie" é assimilada à violência que não reconhece limites, a "hybris" dos Gregos. A violência absoluta, louca, é para os Gregos o mais grave erro que os humanos possam cometer. Os humanos, para o serem, têm que reconhecer que, ao contrário dos deuses, não podem transgredir a sua condição: assim para a violência, que os humanos podem exercer, mas não sem limites, sob pena de os deuses, irritados por essa louca arrogância, enviarem Nemésis, a vingança divina. Pensar o limite é portanto para os Gregos pensar o que separa a violência legítima (incluindo a da guerra), da violência ilegítima (o massacre dos inimigos vencidos e pior ainda dos seus filhos e esposas, de que o Massacre dos Inocentes é um paradigma). Se à guerra se opõe o crime de guerra, ao combate opõe-se o massacre. E para nossa infelicidade, no presente a barbárie na acepção rigorosa do conceito manifesta-se no acto terrorista: matar indiscriminadamente, o maior número possível de pessoas, se possível suscitando o horror: mercados, ruas apinhadas, salas de culto ou de espectáculo cheias de gente...
O que marca o limite são as regras: o que torna um acto violento aceitável e o que pode tornar outro acto "bárbaro", ou seja, relevando da hybris e portanto absolutamente condenável é o facto que ele não se submete às regras que regem a situação na qual se efectua. No que concerne à corrida de matriz andaluza, comportando a morte do touro como momento essencial mas não único, a etnografia das corridas (ou seja a sua observação e descrição minuciosa segundo o método científico), demonstra que no sacrifício do touro os oficiantes respeitam escrupulosamente um conjunto de regras que são sem qualquer dúvida óbvias para os aficionados mas parecem inacessíveis aos olhos dos detractores da tauromaquia. É a observância dessas regras que marca a fronteira com qualquer barbárie, como veremos a seguir.
Imagem: Rubens (1611) Massacre dos Inocentes
JRdS / 31 de Maio de 2016