segunda-feira, 6 de junho de 2016

A morte do Touro: Violência e Limite III

Nos bilhetes precedentes examinei a relação entre a Violência e o Limite que se declina nos primeiros momentos da corrida andaluza e comanda a actuação dos participantes. Mais uma vez, os conhecedores encontrarão aqui (salvo erro meu), uma descrição que parecerá banal: é o que "toda a gente "sabe". A minha hipótese é que precisamente nem toda a gente sabe, ou nem toda a gente tomou o tempo e o cuidado necessários para reflectir sobre o que se vê na arena. 
Passemos pois ao momento mais trágico da corrida andaluza, o da "suerte de matar". Admitamos que o touro foi lidado consoante as suas qualidades (bravura, "nobreza", "fundo" ou seja capacidade para "durar", etc.) e as qualidades do toureiro (coragem, "toreria", beleza dos passes e da sua ligação, etc.). Chega o momento de dar a morte ao touro: o que poderíamos superficialmente considerar como a suprema violência infligida ao animal. O toureiro dispõe o touro segundo as regras da arte, perfila-se e desfere a estocada. É muito frequente que a colocação do golpe falhe, porque a lâmina encontra um osso e "pincha", ou seja, pica, mas não penetra: protestos. Esse falhanço obriga o toureiro a repetir os gestos. A nova tentativa pode falhar, e os protestos tornam-se mais intensos. Quando por fim a estocada é bem executada, os aplausos surgem, mas algo falta: o entusiasmo, a aprovação sem sombras. De facto, após uma faena de grande sucesso, corajosa, bela, longa, ligada, o falhanço da estocada acarreta quase sempre a perda dos troféus aos quais a faena tinha dado direito. Qual a importância deste facto, facilmente observável porque muito frequente? A "punição" do toureiro pelo público (logo acompanhado pela presidência), sob a forma da recusa do troféu (por exemplo a ou as orelhas ), indica claramente o que o público quer ver  que é uma morte dada de maneira fulminante, instantânea, "limpa"). Mais interessante ainda, manifesta-se o que ele não quer ver: o animal a ser objecto de tentativas de morte falhadas, com um penoso prolongamento do acto final*. A perda dos troféus eventualmente merecidos pela faena é acompanhada por protestos, assobios, gritos. O público quer que as coisas sejam feitas "como deve ser" e não de maneira grosseira, impondo ao touro um sofrimento que não entra no que é necessário à lide e ao seu desfecho, antes a degrada. Prolonguemos a observação cuidadosa das reacções do público que exprimem com firmeza a exigência da obediência às regras (e confirmam tanto a existência destas como o consenso de que são objecto). Quando a estocada falhou o seu objectivo, que é dar uma morte quase instantânea ao touro, e se este, não caindo por terra, continua de pé, lutando contra a morte, é absolutamente consensual que o toureiro deve recorrer ao "descabello" para abreviar tanto quanto possível a agonia. Com uma espada especial, o toureiro secciona a medula do touro por altura das primeiras vértebras cervicais; ou pelo menos, tenta fazê-lo. Mais uma vez, o ou os falhanços quando ocorrem, ao prolongarem a agonia do touro, são fortemente sancionados. Se porventura a estocada foi bem sucedida mas como dissemos o touro não cai (o troféu ainda não está perdido), falhanços sucessivos no "descabello" desencadeiam os protestos do público e podem retirar a legitimidade da recompensa, como observei várias vezes. A coerência das reacções dos aficionados é absolutamente notável. Por outro lado, se o touro caiu após a estocada de morte, mas continua com sinais vitais (por exemplo deitado, mas de cabeça erguida), intervém o "puntillero", homem da quadrilha do toureiro (nunca o toureiro), com um punhal especial ("puntilla"), para seccionar a medula. Mas esse gesto é, também ele, sujeito a um zeloso escrutínio: o primeiro gesto deve ser decisivo e se o não é, a repetição e pior ainda as repetições se as houver, são copiosamente assobiadas: o público não quer charcutaria, quer "toreria", o público não quer ver um homem a golpear repetidamente o cerebelo dum boi, quer que a agonia do animal termine de maneira imediata. O "descabello" dum touro caído, ferido de morte, não é um acto banal: é um golpe de misericórdia.
O que verdadeiramente interessa o público dos aficionados é a morte do touro, não a sua agonia. "O touro deve morrer", como sublinhava o filósofo Francis Wolff: mas não de qualquer maneira.
A regulamentação extremamente detalhada da maneira de executar os gestos, e a vigilância sem falha do público, tornam a corrida de morte no oposto da chacina: um acto ritual que impõe (porque se impõe) respeito. Quando observamos a maneira como são interpretadas e aplicadas durante a corrida as regras da tauromaquia (legais e escritas ou tradicionais e tácitas), apesar das diferenças de pontos de vista (público, toureiros, ganadeiros, autoridades) somos obrigados a reconhecer que não é, nem seria possível a simples aplicação mecânica de regras. A complexa negociação da avaliação do que convém, caso a caso, instante a instante, só pode efectivar-se como o observamos porque as práticas tauromáquicas na arena estão inseridas numa cultura partilhada: o amor dos touros e do seu combate.
É esta complexa Cultura que mantém dentro dos limites a violência humana. Quantas vezes os toureiros, em faenas difíceis, ou no momento da colhida sempre traumática, não desejaram despedaçar o animal que o fere? Quantas vezes nós próprios não somos tomados pelo desejo que o touro seja de imediato morto, sem lhe dar mais oportunidades de matar o homem? Pois bem, o que isto significa é que Hybris está dentro de todos nós, a violência habita-nos a todos. Mas outra força se opõe, a Diké, a Lei, a Justiça, a Moderação. E claramente a tauromaquia torna visível essa tensão entre o desejo de destruição sem limites e o desejo de beleza, de moderação, de empatia com o Homem... e com o Touro. Heidegger afirmava que essa Lei, a Diké dos Gregos, é o rosto da Fatalidade. Porquê? Porque a condição humana só se cumpre reconhecendo os seus limites. E os aficionados, quer todos eles se deem conta quer não, têm o privilégio de participar num ritual em que as duas forças se confrontam perante os olhos (e nos corações) de todos. Nesse ritual ganha a Diké, justiça e moderação: porque nem tudo nos é permitido. A tauromaquia não tem que ser tolerada: ela é necessária para o equilíbrio da nossa civilização.
 
* Não é só o público que sofre com o falhanço das tentativas de estocada e/ou descabello: era preciso ver a expressão agoniada do ganadeiro António Miura, escondendo a cara nas mãos, quando na última corrida de San Isidro 2016 o seu touro não pôde ser morto como deve ser e as tentativas se multiplicaram: empatia profunda com o animal, e também com o homem em grande perigo perante esse touro difícil.

Manolete - Estocada / Alfredo David
JRdS / Évora 6 de Junho de 2016.

quinta-feira, 2 de junho de 2016

"Barbárie"? Violência e limite: II - As Regras e o Respeito

 A maior parte do que segue são observações que os conhecedores poderão achar banais. Se as descrevo é porque penso nas pessoas que, aficionadas ou não, tomam essas coisas como perfeitamente "naturais" e óbvias, sem se debruçarem sobre as consequências teóricas que delas convém retirar quanto à natureza do que ocorre nas arenas.
1. A primeira regra estabelece que o touro deve entrar na arena intacto, em excelente condição física, isto é, detentor de todos os seus meios físicos e psíquicos, esses mesmos que o tornam um admirável combatente.
É importante observar as reacções do público perante um animal que apresenta um defeito físico (cegueira dum olho, coxear duma pata, fraqueza das mãos que lhe provoca quedas, etc.) ou comportamental (o animal refugia-se num sítio, recusa investir, etc.). O animal é de imediato reconhecido como não idóneo para a faena; o público exige a sua saída, as autoridades seguem quase sem excepção o juízo do público: não se combate um animal diminuído. (Como já escrevi, o animal admissível para dar entrada no matadouro tem, segundo os regulamentos, apenas que ser capaz de se manter de pé para entrar na manga final do abate).
2. A segunda regra diz respeito à intervenção do picador. Se o touro for aceite, o picador intervém, no momento chamado "castigo", e que é de facto um momento duro para o touro, visto que a vara lhe inflige lesões que podem ser graves (musculares, tendinosas etc.). A justificação que os participantes dão a priori da intervenção do picador é a de que para que o toureio a pé seja possível sem um nível de perigo inaceitável para o toureiro e torne também possível um toureio artístico completo (com todas as suas figuras), o movimento vertical do cachaço e/ou do lombo do touro tem que ser limitado, de modo a que o "derrote", golpe de cornos de baixo para cima e/ou lateral, movimento rapidíssimo, extremamente potente, capaz de levantar em peso um cavalo de seiscentos quilos e o seu cavaleiro, movimento muito perigoso, se torne menos violento. Não podemos então concordar com os anti-taurinos para classificar esta acção (picador) como "bárbara"? Observemos. Existe um consenso moral na praça quanto à legitimidade de princípio da intervenção do picador. Mas essa acção não pode ser feita sem peso nem medida. Pelo contrário, o público protesta ruidosamente assim que o picador realizou o que se pensa (e curiosamente, existe facilmente consenso numa praça de vinte mil espectadores) ser aceitável. Não é só o público que impõe regras ao tercio de varas, porque também o toureiro que vai defrontar o touro intervém em numerosas ocasiões (consoante avalia as capacidades físicas do touro) para restringir a duração e até a intensidade da acção do picador. Por seu turno, o ganadeiro quase sempre presente na lide dos seus touros, admite o tercio de varas, mas protesta vibrantemente assim que estima que o "castigo" é excessivo. O objectivo é entendido por todos os presentes, ao que pude observar em numerosas ocasiões: se a acção da vara é demasiado dura, o animal pode perder a capacidade de combater (investir, "durar"), indispensável para que haja faena e portanto para que o espada possa mostrar o seu toureio. Um animal que perde as mãos, que cai ou abandona rapidamente (se "apaga") na sequência do tercio de varas, é recusado pelo público, e as "autoridades" não têm maneira de se opor ao ditame do público quando este decide que o touro se tornou inválido. O animal é retirado do ruedo. Na maneira de avaliar cada caso concreto (cada "pica") pode haver divergência entre o público e o toureiro. Uma intervenção "pesada"pode ser julgada necessária pelo toureiro e reprovada pelo público: diminui-se artificialmente o perigo, à custa da "verdade" da faena. Mas uma intervenção insuficiente (por ser o toiro cobarde ou o público o exigir), pode pôr o toureiro em grave risco. Foi o que aconteceu há poucos dias (San Isidro, Las Ventas, 31-05) com o terceiro e quarto touros de Saltillo (63 e 45 respectivamente para J. C. Venegas e Sanchez Vara), que recusaram o encontro com o cavalo, procuravam o homem por detrás do engano, perseguiam de longe os toureiros sem capote, e tornaram qualquer lide impossível. Momentos de grande angústia, com touros que poderíamos qualificar de "touros assassinos": nada (nem as bandarilhas pretas) podia substituir a intervenção do picador, mas este nada pôde fazer. O primeiro regressou vivo ao corral, onde terá sido abatido. O segundo, que também recusou o cavalo e procurava o peito do toureiro,  foi morto na praça sem que tenha havido lide nem toureio, tendo Sanchez Vara assumido riscos enormes. Entre o demasiado e o insuficiente, a negociação está presente em todos os numerosos casos que observei: cada touro e cada tercio de varas são avaliados individualmente. Mas nunca se procede de ânimo ligeiro, nem se tolera o excesso sem reprová-lo: o contrário da "barbárie". Falar de "negociação" não é apenas uma imagem. Estão em causa determinações técnicas (capacidades do touro), sociais (os interesses nem sempre coincidentes do público e do toureiro) e éticas (lealdade, verdade da lide). Num contexto complexo e difícil, sempre diferente entre um touro e o seguinte, na quase impossibilidade de fazer uma medição exacta nem da "correcta" colocação da vara, nem da intensidade da intervenção, os participantes (toureiro, presidência, público) manifestam as suas apreciações em cada momento. É da subtil confrontação dessas apreciações que emerge a decisão: prosseguir na acção, suspendê-la de imediato, recusar o touro se este foi invalidado pela intervenção do picador. Tudo, menos o excesso, a violência descontrolada, a loucura destrutiva: a razão, a moderação, a Diké dos Gregos, não a Hybris. Assim funciona a tauromaquia.

Picasso, Museu de Céret, cerâmicas taurinas. Foto JRdS
JRdS / Évora 2 de Junho de 2016.

terça-feira, 31 de maio de 2016

"Barbárie"? Violência e limite: regras e ritual na corrida andaluza - I

No vocabulário anti-taurino destaca-se uma acusação: as tauromaquias seriam o lugar de expressão duma barbárie. Na maior parte das ocorrências em que algum debate se instaura entre defensores e detractores, estes qualificam as intervenções humanas durante o combate com o touro como actos de "barbárie", o que só pode suscitar repugnância por parte de quem os escuta. Contudo, é claro que no contexto polémico o termo é utilizado como um insulto e não como a descrição objectiva duma realidade, insulto que pretende exprimir um repúdio visceral das práticas tauromáquicas . Mas as palavras não devem ser usadas para se ajustarem às intenções de quem as utiliza, sob pena de pervertermos a língua enquanto portadora dum senso comum. Por isso é necessário aproveitar o uso abusivo dessa expressão para demonstrar a que ponto a violência que se manifesta nas arenas está tão longe quanto possível duma "barbárie".
Um ponto deve ficar bem assente: a corrida andaluza envolve actos violentos e sangrentos. Da parte dos humanos, o picador fere o touro com maior ou menor gravidade, os bandarilheiros espetam os seus ferros no cachaço do animal e por fim o matador inflige-lhe uma estocada mortal. Da parte do animal, cujo instinto lutador se exprime sem outros limites que os das suas forças, a violência é inaudita: se porventura, para infelicidade do toureiro, ganha "sentido" e descobre quem se esconde por detrás do engano, o touro só não o mata se não puder atingi-lo e de facto, muitas vezes fere-o gravemente e por vezes mata. Muitas mais vezes, aliás, do que pensam as pessoas que não conhecem essa realidade.
A violência instintiva do touro, mesmo que ela o leve a destroçar inteiramente o corpo do humano, não cabe na definição de "barbárie", como veremos. Mas como definir a violência do toureiro? O que pretendo demonstrar aqui é que essa violência é essencialmente diferente de uma série de actos de barbárie.
Comecemos por esta: o que é que o termo barbárie designa? Tanto na história como na moral ocidental comum e, mais importante, no próprio Direito, a barbárie não é qualquer acto de violência. Mesmo um homicídio pode não ser perpetrado de modo "bárbaro", ou não ser acompanhado de "actos de barbárie", que serão aliás sempre considerados pela Lei e pelos tribunais como pesadas circunstâncias agravantes. Não será preciso evocar de modo concreto o que são tais actos (mutilações, profanações, etc.), para nos entendermos. A barbárie é sempre uma transgressão dos limites, e a própria morte dada a um ser humano pode ser menos chocante que os actos de violência que atiram o seu autor para o domínio da loucura, da perversão radical ou de ambas as coisas e o tornam mais perigoso ainda para a sociedade do que o autor dum "simples" homicídio. Em resumo, desde a mais alta antiguidade, a "barbárie" é assimilada à violência que não reconhece limites, a "hybris" dos Gregos. A violência absoluta, louca, é para os Gregos o mais grave erro que os humanos possam cometer. Os humanos, para o serem, têm que reconhecer que, ao contrário dos deuses, não podem transgredir a sua condição: assim para a violência, que os humanos podem exercer, mas não sem limites, sob pena de os deuses, irritados por essa louca arrogância, enviarem Nemésis, a vingança divina. Pensar o limite é portanto para os Gregos pensar o que separa a violência legítima (incluindo a da guerra), da violência ilegítima (o massacre dos inimigos vencidos e pior ainda dos seus filhos e esposas, de que o Massacre dos Inocentes é um paradigma). Se à guerra se opõe o crime de guerra, ao combate opõe-se o massacre. E para nossa infelicidade, no presente a barbárie na acepção rigorosa do conceito manifesta-se no acto terrorista: matar indiscriminadamente, o maior número possível de pessoas, se possível suscitando o horror: mercados, ruas apinhadas, salas de culto ou de espectáculo cheias de gente...
O que marca o limite são as regras: o que torna um acto violento aceitável e o que pode tornar outro acto "bárbaro", ou seja, relevando da hybris e portanto absolutamente condenável é o facto que ele não se submete às regras que regem a situação na qual se efectua. No que concerne à corrida de matriz andaluza, comportando a morte do touro como momento essencial mas não único, a etnografia das corridas (ou seja a sua observação e descrição minuciosa segundo o método científico), demonstra que no sacrifício do touro os oficiantes respeitam escrupulosamente um conjunto de regras que são sem qualquer dúvida óbvias para os aficionados mas parecem inacessíveis aos olhos dos detractores da tauromaquia. É a observância dessas regras que marca a fronteira com qualquer barbárie, como veremos a seguir.

Imagem: Rubens (1611) Massacre dos Inocentes
JRdS / 31 de Maio de 2016

sexta-feira, 20 de maio de 2016

O enigma dos anti-taurinismos

Enquanto antropólogo, devo começar por recusar a falsa evidência de senso comum, segundo a qual entendemos como banais e óbvias as razões dos anti-taurinismos: simplesmente a sensibilidade para com o "sofrimento animal". Nada deve, para o antropólogo, ser considerado como óbvio: nem o que é o "sofrimento animal", nem em que situações se esconde, onde surge e o que o causa. Levando a sério a questão do modo (aliás dos modos) como a nossa sociedade trata os animais, uma primeira evidência se apresenta: o número de animais presente no seio das nossas sociedades é gigantesco. Os animais "de companhia" são em Portugal, quase tão numerosos como os humanos; os animais "de "criação" (destinados ao consumo humano ou animal ou a outros usos, como o trabalho, etc.), são mais numerosos que os habitantes humanos. Desde o nascimento até à morte, estes animais têm vidas muito diferenciadas, que comportam mais ou menos constrangimentos, mais ou menos bem-estar, etc. Um ponto fulcral na vida dos animais que criamos é a sua morte. Para os animais "de companhia", o abate mais ou menos "confortável" é o destino de cerca de 100.000 gatos e cães por ano em Portugal. Quanto aos animais "de criação", é interessante dirigirmos o olhar para uma realidade mais alargada, a escala europeia, que determina fortemente essa actividade. A escala do problema do abate dos animais confronta-nos, na Europa a 28, ou seja um conjunto de cerca de 507 milhões de habitantes, com números enormes. Sem procurarmos ser exaustivos, e para dar uma ideia de conjunto, evoquemos o número de porcos abatidos na Europa em 2011 (UE - 27): 254,5 milhões de porcos. Países com populações relativamente pequenas abatem mais porcos por ano do que o número de habitantes do país. A Bélgica abate 11,9 milhões de porcos por ano, a Holanda 12,1 milhões, a Grande Bretanha 9,8 milhões... A Dinamarca produz cada ano 26 milhões de porcos abatidos no país ou exportados (2008). Quanto às condições do abate, o essencial está nos números, visto que a massificação do abate traz consequências verdadeiramente inevitáveis de desumanização dos seres humanos que nele trabalham. Um exemplo; um matadouro alemão, da empresa Wiesenhof em Lohne (Baixa Saxónia), abate 340.000 aves por dia e acabava de obter autorização de passar para 432.000 aves / dia, quando um gigantesco incêndio deflagrou (28-03-2016), destruindo as instalações (entretanto reconstruidas). Nela trabalhavam 1600 pessoas, das quais provavelmente bastante mais de metade na secção de abate, o que significa que cada trabalhador mata entre 250 e 500 animais por dia, 60 por hora, ou seja cerca de um animal por minuto. Se  a dimensão dos matadouros é gigantesca, ela está em proporção com os aviários: na Alemanha e na Itália, cerca de metade da produção de aves (já não será bem "criação") tem lugar em oficinas com uma média de 250.000 animais cada uma.
Quanto ao gado bovino, a Europa tem 88,3 milhões de animais (2015) e produz cerca de 7,6 milhões de toneladas de carne bovina, o que pressupõe o abate de cerca de 21 milhões de animais. Dois terços da produção de carne bovina na Europa são provenientes do abate de vacas leiteiras em fim de "vida útil".
Espécies suína, avícolas, bovinas, são portanto criadas e abatidas em quantidades difíceis de imaginar. A industrialização de massa a todas as fases da "fileira" "desde a forquilha ao garfo" gera problemas de degradação da condição animal e humana cuja acuidade é apenas em pequena parte mitigada (ou disfarçada?) pelas regulamentações do "bem-estar animal". Cada uma das fases da produção gera problemas importantes. À saída das quintas, o transporte é uma delas (com perdas - animais mortos - não negligenciáveis). No que respeita ao abate, a própria massificação, aumentando exponencialmente o número de animais admitidos e abatidos por dia, torna impossível o tratamento "humano" dos animais. As dificuldades de recrutamento que os matadouros têm vindo a registar decorrem, segundo vários inquéritos, do carácter traumático das tarefas, por mais que a "humanização" fosse tentada (quando o é). Um inquérito recente (Maio de 2016) feito pelos serviços de inspecção do ministério da agricultura francês a todos os matadouros franceses, na sequência de vários escândalos de tratamentos bárbaros infligidos aos animais nos matadouros detectou a nível nacional, infracções "muito graves" às normas em cerca de 5% dos casos. Qualquer investigador sabe que essa constatação não passa da ponta do icebergue: o que aí vai por essa Europa do Atlântico ao Báltico é um problema cuja dimensão o torna inimaginável.
É-nos permitido formular uma hipótese: é justamente porque ele é inimaginável que o problema não "passa" na consciência pública: demasiado grande, demasiado complexo, demasiado terrível.
Os números respeitantes à morte de touros de lide na região taurina europeia (Sul de França, Espanha, Portugal) são difíceis de referenciar e as estimativas variam entre 6.000 e 30.000 animais por ano. Com cerca de 500 corridas formais por ano em Espanha (3.000 touros) e outros tantos festejos "informais"(um ou dois touros cada, entre 500 e 1.000 animais), acrescentando as 70 corridas francesas (420 animais) e 250 portuguesas (1500 touros), obtemos de facto perto de 6.000 touros / ano. Nada impede que, por prudência visto que as estatísticas são imperfeitas (entre outras omissões, os touros de substituição, "sobreros", um ou dois por corrida) aceitemos uma estimativa do dobro, ou seja 12.000 touros sacrificados por ano em toda a vasta região taurina europeia. O que ressalta de imediato ao olhar antropológico - e à atenção do leitor - é a extraordinária diferença de dimensão dos fenómenos: o abate industrial de animais cifra-se nas centenas de milhões, para os bovinos situa-se nas dezenas de milhões e para os touros de lide numa escassa dezena de milhares. Já vimos quais as consequências inevitáveis da massificação do abate em termos de crueldade para com os animais e de sofrimento para o pessoal: elas são incomensuráveis com a dimensão da morte dos touros de lide.
Como explicar então que seja precisamente este pequeníssimo número de animais sacrificados - se comparado com os números de animais abatidos na Europa - que concentra a agressividade e até o ódio das associações ditas de "defesa dos animais", cujas raízes se encontram, para nosso maior espanto, precisamente nos países da Europa do Norte, nos quais a realidade da condição animal é trágica, como sumariamente indicámos? Tal é a natureza do "enigma anti-taurino": a focalização do trauma do sofrimento animal num fenómeno ultra-minoritário quanto ao número de animais envolvidos: as corridas de touros. O que explica a cegueira dos anti-taurinismos ao fenómeno de massa, a sua incapacidade para abranger o problema no seu conjunto e a concentração obsessiva num ponto minúsculo dessa massa?
O inquérito tem que ser continuado.


 
Imagem: Picasso, série de touros, 1946-1947
 JRdS, Évora, 20 de Maio de 2016

terça-feira, 17 de maio de 2016

Suicídio assistido e morte dada: a questão da liberdade

Pôr fim à própria vida é um direito fundamental cuja aceitação é recente e problemática. A Igreja católica sempre condenou o suicídio, e recusou enterrar os suicidados com cerimónia religiosa: o Homem não teria o direito de praticar aquilo que apenas Deus pode fazer.  Já o nosso amigo Émile Durkheim mostrou que a par dos suicídios "egoístas" (por motivos estritamente pessoais), existem suicídios "altruístas", quando pôr fim à própria vida permite "salvar a honra" ou o interesse do grupo. O primeiro pode resultar do isolamento, da solidão; o segundo traduz uma hiperintegração ao grupo: o indivíduo sacrifica-se para o "bem" do seu grupo tal como este o entende (caso do harakiri japonês, por exemplo). A reivindicação do direito ao suicídio tem sido argumentada em termos de vontade de pôr fim a um sofrimento insuportável, e/ou de preservar a dignidade da pessoa confrontada com uma degradação física e moral imparável. Para ser um suicídio, a morte tem que ser dada pela pessoa a si própria. É onde surge o problema do "suicídio assistido", nas situações em que a pessoa não tem a capacidade (física, moral) de executar ela própria o gesto fatal e pede ajuda a outrem.
A maioria das argumentações a favor do suicídio assistido encara-o como equivalente a uma eutanásia, visto que a morte é dada por outra pessoa; reciprocamente, a eutanásia tende a ser apresentada como equivalente a um suicídio assistido. Os que argumentam favoravelmente a ambas a modalidades de supressão duma vida raciocinam sempre com base em dois postulados: (i) que a pessoa a quem vai ser dada a morte exerce o seu direito de escolha está no pleno uso das suas faculdades mentais, intelectuais e afectivas e (ii) não sofre qualquer constrangimento exterior que possa influenciar ou diminuir a sua liberdade.
Estes postulados constróiem um indivíduo abstracto, lúcido, livre e independente, o que validaria o julgamento racional que faz. Mas este "indivíduo" é uma abstracção; a tese que entendo defender é que ela é um erro de percepção da realidade, decorrente dum etnocentrismo de classe: a visão romântica do indivíduo que, sozinho face ao mundo, decide do seu destino. A imagem que o intelectual tem de si próprio, imagem cuja adequação é, obviamente, duvidosa.
A realidade, tal como tem sido amplamente documentada, obriga-nos a corrigir esta visão ideal. A decisão de pôr fim à própria vida não tem qualquer equivalente na vida das pessoas, pelo carácter irreversível dos efeitos do acto. Ao que nos dão a saber os estudos neste domínio, existem três problemas distintos, que têm que ser tratados como tais: o da realização do acto fatal, o da expressão da vontade de morrer, e o do processo de formação dessa vontade. Os dois primeiros têm sido frequentemente abordados, o terceiro, essencial do meu ponto de vista, muito menos. A realização do acto fatal coloca-nos, como foi dito, perante a questão da capacidade para praticar esse acto (numa escala de capacidade material: pela própria pessoa (suicídio), por um próximo a pedido dela (suicídio assistido), ou por terceiros (eutanásia).
Quanto à expressão da vontade de morrer, é claro que as modalidades dessa expressão são essenciais. A mais sólida dessas modalidades é a declaração em devida forma, perante testemunhas, ou por escrito, acautelando sempre a condição de plena lucidez e firmeza da convicção da pessoa. Mais frágil é a declaração puramente verbal perante um pessoal anónimo (e destinado a permanecer anónimo pelo carácter institucional do processo); significativamente, em vários estudos sobre esse processo de expressão da vontade, fala-se de "consulta do paciente" antes do acto de morte ("eutanásia efectuada com consulta do paciente"). Note-se bem: o "paciente" é "consultado" (ou "ouvido") quanto à oportunidade de receber a eutanásia, ou seja, a morte. Deixemos por instantes a análise dos casos (não tão raros, mencionados na literatura especializada) em que o pessoal médico decide dar a morte a um paciente sem que este o tenha pedido, nem tenha sido "consultado".
Acho mais importante clarificar as condições de formação da vontade de morrer, que pode exprimir-se das diferentes formas acima mencionadas, ou seja, das circunstâncias pessoais e sociais nas quais a decisão pode ser formada, antes de ser exprimida. Na imagem ideal do Indivíduo Soberano e Livre, nenhuma circunstância interior (limitação ao livre-arbítrio) nem exterior (condicionamento ou constrangimento), podem enfraquecer a presunção de liberdade nem invalidar a decisão do sujeito.  O que sabemos hoje das circunstâncias em que se efectua a eutanásia nos países onde é legal, e o que adivinhamos (sem provas cabais) do que acontece nos países como Portugal em que ela o não é, leva-nos a duvidar que o quadro de análise das situações construído à volta do indivíduo lúcido, livre interiormente e socialmente é inteiramente desadequado. Na próxima mensagem tentarei expor porquê.


JRdS, Évora, 17 de Maio de 2016.

domingo, 15 de maio de 2016

A questão do sofrimento animal e as tauromaquias, entre o "útil" e o "inútil"

Na base de muitos dos ataques contra as tauromaquias encontra-se o argumento que  o sofrimento infligido ao animal nas corridas de touros é um "sofrimento inútil". Este termo tem aliás, um eco na própria legislação que condena os maus tratos como  sendo o facto de causar sofrimento "inútil" a um animal. Um exemplo ilustra bem essa noção: o proprietário dum animal pode abatê-lo, com a condição de não lhe infligir sofrimentos "inúteis". A inutilidade dos sofrimentos é neste caso aferida em relação ao fim prosseguido: matar o animal. Todos os gestos que são necessários e concorrem directamente para esse fim, ou seja cujo efeito material é directamente letal e apenas esses gestos, são considerados "úteis". A relação lógica que a lei estabelece é uma relação entre fins e meios: nem todos os meios são legítimos para realizar um fim. Neste âmbito, se as corridas de touros tivessem como finalidade matar os touros,  a maneira "útil" de fazê-lo poderia ser (como sugere ironicamente o antropólogo britânico G. Marvin*), dar-lhes um tiro certeiro, ou lanceá-los ou dar-lhes a estocada directamente. Todos os gestos que se afastem ou prolonguem a realização imediata dessa "finalidade", seriam "inúteis" e portanto ilegítimos.
Essa é a lógica da regulamentação do abate dos animais nos matadouros: "evitar os sofrimentos inúteis".
Noutro sítio discutirei se é ou não possível, no abate de massa, industrializado, evitar uma intensidade considerável de "sofrimento inútil". Por ora, vou tentar apenas clarificar a questão lógica no que respeita às corridas de morte. Desde logo, a finalidade da corrida não é matar o touro: para um grande número de pessoas, esta evidência passa desapercebida. A finalidade da corrida de touros é o combate entre um touro e um humano. Esse combate é tão diferente quanto possível duma "luta livre" em que valeria tudo, porque é um combate ritual.
O sacrifício do touro obedece a regras tão estritas como as que regem muitos rituais por esse mundo fora: o que é permitido ou proibido, a ordem pela qual os gestos do ritual devem efectuar-se, e por último, o sacrifício do touro. Para ser mais explícito, todos os gestos praticados pelos humanos entre o momento em que o touro, livre, atlético, formidavelmente potente irrompe na arena e o momento em que cai, ferido de morte pela espada, não têm como finalidade a morte do animal, se bem que esta represente o ponto final - o fim do confronto. Não, esses gestos, desde o embate com o picador ao desafio dos bandarilheiros, e à dança mortífera entre o touro e o toureiro, na qual este joga a própria vida, têm outra lógica subjacente, que  não é a de matar o animal, mas sim de provocar o seu combate: excitação, agressão, ferimentos infligidos, medem a sua legitimidade à sua eficácia em provocar o poderoso instinto de combate do animal. Um picador que destruísse o animal com uma intervenção excessiva seria condenado por todos os participantes.
É indispensável observar as reacções dos públicos e dos toureiros face à intervenção do picador: a um eventual excesso opõem-se protestos imediatos (assobios, gritos) do público e a intervenção do toureiro: o animal deve poder combater, nunca ser invalidado. É necessário observar e entender as reacções do público (os aficionados lideram essas reacções) perante o falhanço da estocada de morte: por que razão protesta o público com tanta veemência quando o toureiro não consegue matar o touro com uma única e certeira estocada e é obrigado a tentar várias vezes e pelo contrário o aplaude se o golpe de morte tem efeito instantâneo? À medida que as tentativas se multiplicam, que o touro não morre e se arrasta lamentavelmente, que os "descabellos" não são eficazes, o protesto torna-se fúria: o público não quer assistir ao espectáculo dum animal que fique longos minutos a agonizar. Note-se: é o contrário absoluto de "gostar de ver sofrer" que a ignorância maldosa dos anti-taurinos imagina. De facto, nenhum participante o quer: os toureiros vivem um inferno moral, os membros da sua quadrilha sofrem a vergonha, os ganadeiros vivem uma imensa tristeza. É óbvio que estas reacções são um modo de regulação do ritual: as regras definem a relação entre meios e fins. Se a morte do animal é que põe o ponto final à sequência ritual, ela tem que obedecer da maneira mais precisa que se possa imaginar à regra: um único golpe para uma morte quase instantânea: essa é a bela maneira de morrer para um touro; a bela morte dada pelo humano.
* G. Marvin, Bullfight, University of Illinois, 1994)
 
Sacrifício do Touro por Mitra (época romana)
JRdS 15 de Maio de 2016

sexta-feira, 13 de maio de 2016

Notícias da frente Biopolítica: A “sedação”


De modo análogo ao que aqui foi assinalado por Gal Vão, utilizando a expressão de Agamben (nos hospitais não se morre - as PESSOAS não morrem-, produzem-se cadáveres), nos lares produzem-se legumes pré-condicionados para a morte. O abuso é tão geral que até quem não se interessa pela questão o tem testemunhado involuntariamente. Os Franceses até criaram uma palavra especial para denominar estes lares: "Mouroirs".
Quem dirá o que por aí vai de abuso silencioso?
No DN de hoje (corrigi a ortografia):
"Relativamente às pessoas idosas, há muitos ecos de que há medicação em excesso em casa e, sobretudo, nos lares. Há a presunção de que é frequente serem medicadas com mais do que é indicado pelo médico para não incomodarem", adianta Álvaro de Carvalho, director do programa nacional para a saúde mental da DGS. Também Wolfgang Gruner, médico e vice-presidente da Associação Portuguesa de Psicogerontologia, diz que "há a percepção de que pode haver excesso de medicação nos lares para os doentes estarem mais tranquilos e dormirem melhor."
O injusto sono dos justos.
O verdadeiro problema, segundo parece cada vez mais claro, é que a "sedação" se torna um dispositivo geral, não reservado a uma categoria (os mais fracos, prisioneiros de instituições especializadas), dispositivo tornado central na administração das nossas sociedades. O conjunto de sedativos inclui o disparar do consumo de químicos, mas não se limita a eles. O lema geral é o novo slogan "Keep calm", nós tratamos disso (e de si): está tudo bem.
 JRdS

 
Imagem : Agatha Siecinska: Les improductibles au mouroir