domingo, 15 de maio de 2016

A questão do sofrimento animal e as tauromaquias, entre o "útil" e o "inútil"

Na base de muitos dos ataques contra as tauromaquias encontra-se o argumento que  o sofrimento infligido ao animal nas corridas de touros é um "sofrimento inútil". Este termo tem aliás, um eco na própria legislação que condena os maus tratos como  sendo o facto de causar sofrimento "inútil" a um animal. Um exemplo ilustra bem essa noção: o proprietário dum animal pode abatê-lo, com a condição de não lhe infligir sofrimentos "inúteis". A inutilidade dos sofrimentos é neste caso aferida em relação ao fim prosseguido: matar o animal. Todos os gestos que são necessários e concorrem directamente para esse fim, ou seja cujo efeito material é directamente letal e apenas esses gestos, são considerados "úteis". A relação lógica que a lei estabelece é uma relação entre fins e meios: nem todos os meios são legítimos para realizar um fim. Neste âmbito, se as corridas de touros tivessem como finalidade matar os touros,  a maneira "útil" de fazê-lo poderia ser (como sugere ironicamente o antropólogo britânico G. Marvin*), dar-lhes um tiro certeiro, ou lanceá-los ou dar-lhes a estocada directamente. Todos os gestos que se afastem ou prolonguem a realização imediata dessa "finalidade", seriam "inúteis" e portanto ilegítimos.
Essa é a lógica da regulamentação do abate dos animais nos matadouros: "evitar os sofrimentos inúteis".
Noutro sítio discutirei se é ou não possível, no abate de massa, industrializado, evitar uma intensidade considerável de "sofrimento inútil". Por ora, vou tentar apenas clarificar a questão lógica no que respeita às corridas de morte. Desde logo, a finalidade da corrida não é matar o touro: para um grande número de pessoas, esta evidência passa desapercebida. A finalidade da corrida de touros é o combate entre um touro e um humano. Esse combate é tão diferente quanto possível duma "luta livre" em que valeria tudo, porque é um combate ritual.
O sacrifício do touro obedece a regras tão estritas como as que regem muitos rituais por esse mundo fora: o que é permitido ou proibido, a ordem pela qual os gestos do ritual devem efectuar-se, e por último, o sacrifício do touro. Para ser mais explícito, todos os gestos praticados pelos humanos entre o momento em que o touro, livre, atlético, formidavelmente potente irrompe na arena e o momento em que cai, ferido de morte pela espada, não têm como finalidade a morte do animal, se bem que esta represente o ponto final - o fim do confronto. Não, esses gestos, desde o embate com o picador ao desafio dos bandarilheiros, e à dança mortífera entre o touro e o toureiro, na qual este joga a própria vida, têm outra lógica subjacente, que  não é a de matar o animal, mas sim de provocar o seu combate: excitação, agressão, ferimentos infligidos, medem a sua legitimidade à sua eficácia em provocar o poderoso instinto de combate do animal. Um picador que destruísse o animal com uma intervenção excessiva seria condenado por todos os participantes.
É indispensável observar as reacções dos públicos e dos toureiros face à intervenção do picador: a um eventual excesso opõem-se protestos imediatos (assobios, gritos) do público e a intervenção do toureiro: o animal deve poder combater, nunca ser invalidado. É necessário observar e entender as reacções do público (os aficionados lideram essas reacções) perante o falhanço da estocada de morte: por que razão protesta o público com tanta veemência quando o toureiro não consegue matar o touro com uma única e certeira estocada e é obrigado a tentar várias vezes e pelo contrário o aplaude se o golpe de morte tem efeito instantâneo? À medida que as tentativas se multiplicam, que o touro não morre e se arrasta lamentavelmente, que os "descabellos" não são eficazes, o protesto torna-se fúria: o público não quer assistir ao espectáculo dum animal que fique longos minutos a agonizar. Note-se: é o contrário absoluto de "gostar de ver sofrer" que a ignorância maldosa dos anti-taurinos imagina. De facto, nenhum participante o quer: os toureiros vivem um inferno moral, os membros da sua quadrilha sofrem a vergonha, os ganadeiros vivem uma imensa tristeza. É óbvio que estas reacções são um modo de regulação do ritual: as regras definem a relação entre meios e fins. Se a morte do animal é que põe o ponto final à sequência ritual, ela tem que obedecer da maneira mais precisa que se possa imaginar à regra: um único golpe para uma morte quase instantânea: essa é a bela maneira de morrer para um touro; a bela morte dada pelo humano.
* G. Marvin, Bullfight, University of Illinois, 1994)
 
Sacrifício do Touro por Mitra (época romana)
JRdS 15 de Maio de 2016

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