terça-feira, 10 de maio de 2016

Direitos dos animais, ou as derrapagens da bondade

Bem sei que os juristas verão imediatamente a diferença entre o conceito de "direitos dos animais" (que aqui discuto) e o conceito de "Direito do Animal", mas os juristas são uma minoria entre nós. Mais importante é, a meu ver, explicitar as consequências - ideológicas, sociais, políticas -,  da confusão entre esses dois conceitos.
O "Direito do Animal" designa o conjunto de normas jurídicas (e só as normas que têm expressão jurídica, sublinho), que regulam as relações entre os humanos e os animais. Equivalentes na sua definição geral são o "Direito do Trabalho", o "Direito da Família", o "Direito do Ambiente", etc., enquanto corpos normativos especiais. O "Direito do Animal" inclui portanto as regras sobre bem-estar animal na criação de gado e na produção animal, as regras sanitárias, incluindo os animais de companhia, a definição de "maus-tratos", e a punição instituída caso haja violação de qualquer dessas normas.  Essas normas definem as modalidades do relacionamento dos humanos com os animais, ou seja as regras humanas a que os humanos devem obedecer ao relacionar-se com os animais. Ou ainda: o conjunto de deveres (reconhecidos na Lei) que os humanos impõem a si próprios em relação aos animais. Espero que essas "obviedades" estejam claras.
A problemática dos "direitos dos animais" é inteiramente diferente. Em vez de encarar a relação humano/animal do ponto de vista dos sujeitos humanos, pretende instituir os animais em sujeitos de direito, ou como reivindicam alguns, como "pessoas" titulares de direitos.
Apesar da estranha ignorância que as posições animalistas demonstram sobre o que é o Direito positivo, e até o "Direito Natural", a ideologia dos "direitos dos animais" tem alastrado nas sociedades ocidentais nas últimas décadas. Suspeito que uma das causas desse contágio reside na profunda culpabilidade dos nossos contemporâneos em relação aos animais, na era da produção industrial de matérias animais (que J. Pourcher - INRA - distingue, penso que com razão, da "criação de gado", mas esta é uma questão para mais tarde).
Para não ser demasiado longo, proponho apenas uma dedução. Se os animais forem considerados como sujeitos de direito (como pessoas no sentido jurídico), e estes direitos forem exarados em leis, os animais devem poder exercê-los, por exemplo recorrendo ao aparelho judicial para fazer valer esses direitos. Caso não possam fazê-lo directamente... em pessoa (como quando se é uma criança ou se está incapacitado, exemplos presentes no "programa" do partido PAN), os animais devem poder ser representados por um representante legal, e/ou um advogado. Seria portanto indispensável criar um corpo especial de representantes legais (tutores) designados pelos animais, ou por um humano em seu nome, para fazer valer esses direitos. Um problema decorre já da determinação de quem tem o direito (e só pode ser um humano) de designar o representante do animal, e da relação, obrigatoriamente pessoal que o representante deve ter com o representado. O círculo fica portanto fechado: os humanos falam aos humanos dos direitos e interesses dos animais. Estes continuam, durante a litigação, a pastar, se for caso disso. O que esse círculo demonstra, é que os "direitos dos animais" são uma relação entre humanos e outros humanos a respeito dos animais. Estes são objecto de debate (jurídico, social, político) e eventualmente de conflito, entre humanos. E como aos animais não se podem reconhecer deveres (se eles os não cumprissem - multa? prisão?) , a atribuição de direitos torna-se aberrante.
Como, pelo menos no nosso direito actual, o interesse, reconhecido por direito, só pode ser defendido em nome do indivíduo seu titular, cada boi duma manada deveria fazer valer o seu direito constituído, individual, assim como cada uma das dez mil galinhas dum aviário. Cada um o seu processo, o seu advogado, o seu julgamento. Lógicas loucas.
O argumento de que às crianças pequenas também não se podem impor deveres (recíprocos dos direitos que têm), e que portanto os animais deveriam ter o mesmo estatuto moral que as crianças, argumento inaudito mas sobejamente utilizado nomeadamente pelos partidários Pânicos, não colhe. As crianças, critério indiscutível, constituem-se à nascença enquanto pessoas que, imediatamente dotadas de direitos, serão depois sujeitos de deveres cada vez mais extensos. O dever da pessoa criança é um dever diferido: assim se renovam e se substituem as gerações. Mas o meu cavalo, por mais que envelheça, nunca será mais do que um belo animal, de que muito gosto e que trato, como é meu dever, tão bem quanto possível. Nunca me deverá nada. Nem tem direito a nada.
Julgamentos de animais (França séculos XIII e XIV). Julgamento da porca ("assassina") que devorou um bebé. Lógica louca.

José R. dos Santos. Évora, 10 de Maio de 2016.

1 comentário: