terça-feira, 31 de maio de 2016

"Barbárie"? Violência e limite: regras e ritual na corrida andaluza - I

No vocabulário anti-taurino destaca-se uma acusação: as tauromaquias seriam o lugar de expressão duma barbárie. Na maior parte das ocorrências em que algum debate se instaura entre defensores e detractores, estes qualificam as intervenções humanas durante o combate com o touro como actos de "barbárie", o que só pode suscitar repugnância por parte de quem os escuta. Contudo, é claro que no contexto polémico o termo é utilizado como um insulto e não como a descrição objectiva duma realidade, insulto que pretende exprimir um repúdio visceral das práticas tauromáquicas . Mas as palavras não devem ser usadas para se ajustarem às intenções de quem as utiliza, sob pena de pervertermos a língua enquanto portadora dum senso comum. Por isso é necessário aproveitar o uso abusivo dessa expressão para demonstrar a que ponto a violência que se manifesta nas arenas está tão longe quanto possível duma "barbárie".
Um ponto deve ficar bem assente: a corrida andaluza envolve actos violentos e sangrentos. Da parte dos humanos, o picador fere o touro com maior ou menor gravidade, os bandarilheiros espetam os seus ferros no cachaço do animal e por fim o matador inflige-lhe uma estocada mortal. Da parte do animal, cujo instinto lutador se exprime sem outros limites que os das suas forças, a violência é inaudita: se porventura, para infelicidade do toureiro, ganha "sentido" e descobre quem se esconde por detrás do engano, o touro só não o mata se não puder atingi-lo e de facto, muitas vezes fere-o gravemente e por vezes mata. Muitas mais vezes, aliás, do que pensam as pessoas que não conhecem essa realidade.
A violência instintiva do touro, mesmo que ela o leve a destroçar inteiramente o corpo do humano, não cabe na definição de "barbárie", como veremos. Mas como definir a violência do toureiro? O que pretendo demonstrar aqui é que essa violência é essencialmente diferente de uma série de actos de barbárie.
Comecemos por esta: o que é que o termo barbárie designa? Tanto na história como na moral ocidental comum e, mais importante, no próprio Direito, a barbárie não é qualquer acto de violência. Mesmo um homicídio pode não ser perpetrado de modo "bárbaro", ou não ser acompanhado de "actos de barbárie", que serão aliás sempre considerados pela Lei e pelos tribunais como pesadas circunstâncias agravantes. Não será preciso evocar de modo concreto o que são tais actos (mutilações, profanações, etc.), para nos entendermos. A barbárie é sempre uma transgressão dos limites, e a própria morte dada a um ser humano pode ser menos chocante que os actos de violência que atiram o seu autor para o domínio da loucura, da perversão radical ou de ambas as coisas e o tornam mais perigoso ainda para a sociedade do que o autor dum "simples" homicídio. Em resumo, desde a mais alta antiguidade, a "barbárie" é assimilada à violência que não reconhece limites, a "hybris" dos Gregos. A violência absoluta, louca, é para os Gregos o mais grave erro que os humanos possam cometer. Os humanos, para o serem, têm que reconhecer que, ao contrário dos deuses, não podem transgredir a sua condição: assim para a violência, que os humanos podem exercer, mas não sem limites, sob pena de os deuses, irritados por essa louca arrogância, enviarem Nemésis, a vingança divina. Pensar o limite é portanto para os Gregos pensar o que separa a violência legítima (incluindo a da guerra), da violência ilegítima (o massacre dos inimigos vencidos e pior ainda dos seus filhos e esposas, de que o Massacre dos Inocentes é um paradigma). Se à guerra se opõe o crime de guerra, ao combate opõe-se o massacre. E para nossa infelicidade, no presente a barbárie na acepção rigorosa do conceito manifesta-se no acto terrorista: matar indiscriminadamente, o maior número possível de pessoas, se possível suscitando o horror: mercados, ruas apinhadas, salas de culto ou de espectáculo cheias de gente...
O que marca o limite são as regras: o que torna um acto violento aceitável e o que pode tornar outro acto "bárbaro", ou seja, relevando da hybris e portanto absolutamente condenável é o facto que ele não se submete às regras que regem a situação na qual se efectua. No que concerne à corrida de matriz andaluza, comportando a morte do touro como momento essencial mas não único, a etnografia das corridas (ou seja a sua observação e descrição minuciosa segundo o método científico), demonstra que no sacrifício do touro os oficiantes respeitam escrupulosamente um conjunto de regras que são sem qualquer dúvida óbvias para os aficionados mas parecem inacessíveis aos olhos dos detractores da tauromaquia. É a observância dessas regras que marca a fronteira com qualquer barbárie, como veremos a seguir.

Imagem: Rubens (1611) Massacre dos Inocentes
JRdS / 31 de Maio de 2016

3 comentários:

  1. Dr. José Rodrigues dos Santos, devo dizer-lhe que não apreciei a lógica do seu texto anterior, "O enigma dos anti-taurinismos", porque, objectivamente, somos também carnívoros e porque, nós europeus, somos centenas de milhões de pessoas... logo temos que matar, para nos alimentarmos, centenas de milhões de várias espécies animais.
    Isto vem da bruma dos tempos como estudos dos mais elementares parecem mostrar.
    «Uma das causas da Revolução Francesa foi a irritação dos camponeses porque não se lhes permitia caçar...» (contra-capa de Ortega y Gasset, José, SOBRE A CAÇA E OS TOUROS, Cotovia, Lisboa, 2009).
    Ora o que o texto referido do Dr. José dos Santos parece transmitir é uma indisponibilidade para a evidência industrial na esfera alimentar que consegue dar satisfação às pessoas a preços módicos. Por aí, segundo parece que diz, é que os anti-taurinos, preferencialmente, deveriam começar antes de se preocuparem com a minúscula matança exigida pelas Corridas de Touros. Essa preocupação integrar-se-ia em políticas a uma escala maior contra o abate de animais não humanos.
    Meu caro Dr. José Dos Santos, ainda que a minha leitura ao seu texto deixe a desejar, o que de si li em "O enigma dos anti-taurinismos" apresenta-se aos meus olhos mais carregado de ideologia que de cientificidade... muito ao contrário de ""Barbárie"? Violência e limite: regras e ritual na corrida andaluza - I", texto carregado de justeza.

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  2. Caro Senhor,
    A minha ideia não era suprimir a criação de gado para uso quase exclusivo da alimentação humana (e animal, cães, gatos e até vacas e porcos). A ideia é que aquilo que é aceite sem dificuldade pelos anti-taurinos (matanças de massa para comer), produz inúmeros casos de abusos, que os anti-taurinos parecem não querer ver e cuja dimensão é tal que aí é que a sua raiva devia concentrar-se. E não nas tauromaquias, que são um fenómeno de pequenas dimensões de carácter inteiramente diferente. Cordialmente, JRdS.

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  3. As touradas provocam muito sofrimento a dois pacíficos herbívoros. Não seja cúmplice dessa tortura desnecessária. Não seja responsável pela tortura. Não participe nem assista a touradas.
    “A Tauromaquia é a terrível e venal arte de torturar e matar animais em público, segundo determinadas regras. Traumatiza as crianças e adultos sensíveis. A tourada agrava o estado dos neuróticos atraídos por estes espectáculos. Desnaturaliza a relação entre o homem e o animal, afronta a moral, a educação, a ciência e a cultura" (UNESCO, 1980)

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