sexta-feira, 20 de maio de 2016

O enigma dos anti-taurinismos

Enquanto antropólogo, devo começar por recusar a falsa evidência de senso comum, segundo a qual entendemos como banais e óbvias as razões dos anti-taurinismos: simplesmente a sensibilidade para com o "sofrimento animal". Nada deve, para o antropólogo, ser considerado como óbvio: nem o que é o "sofrimento animal", nem em que situações se esconde, onde surge e o que o causa. Levando a sério a questão do modo (aliás dos modos) como a nossa sociedade trata os animais, uma primeira evidência se apresenta: o número de animais presente no seio das nossas sociedades é gigantesco. Os animais "de companhia" são em Portugal, quase tão numerosos como os humanos; os animais "de "criação" (destinados ao consumo humano ou animal ou a outros usos, como o trabalho, etc.), são mais numerosos que os habitantes humanos. Desde o nascimento até à morte, estes animais têm vidas muito diferenciadas, que comportam mais ou menos constrangimentos, mais ou menos bem-estar, etc. Um ponto fulcral na vida dos animais que criamos é a sua morte. Para os animais "de companhia", o abate mais ou menos "confortável" é o destino de cerca de 100.000 gatos e cães por ano em Portugal. Quanto aos animais "de criação", é interessante dirigirmos o olhar para uma realidade mais alargada, a escala europeia, que determina fortemente essa actividade. A escala do problema do abate dos animais confronta-nos, na Europa a 28, ou seja um conjunto de cerca de 507 milhões de habitantes, com números enormes. Sem procurarmos ser exaustivos, e para dar uma ideia de conjunto, evoquemos o número de porcos abatidos na Europa em 2011 (UE - 27): 254,5 milhões de porcos. Países com populações relativamente pequenas abatem mais porcos por ano do que o número de habitantes do país. A Bélgica abate 11,9 milhões de porcos por ano, a Holanda 12,1 milhões, a Grande Bretanha 9,8 milhões... A Dinamarca produz cada ano 26 milhões de porcos abatidos no país ou exportados (2008). Quanto às condições do abate, o essencial está nos números, visto que a massificação do abate traz consequências verdadeiramente inevitáveis de desumanização dos seres humanos que nele trabalham. Um exemplo; um matadouro alemão, da empresa Wiesenhof em Lohne (Baixa Saxónia), abate 340.000 aves por dia e acabava de obter autorização de passar para 432.000 aves / dia, quando um gigantesco incêndio deflagrou (28-03-2016), destruindo as instalações (entretanto reconstruidas). Nela trabalhavam 1600 pessoas, das quais provavelmente bastante mais de metade na secção de abate, o que significa que cada trabalhador mata entre 250 e 500 animais por dia, 60 por hora, ou seja cerca de um animal por minuto. Se  a dimensão dos matadouros é gigantesca, ela está em proporção com os aviários: na Alemanha e na Itália, cerca de metade da produção de aves (já não será bem "criação") tem lugar em oficinas com uma média de 250.000 animais cada uma.
Quanto ao gado bovino, a Europa tem 88,3 milhões de animais (2015) e produz cerca de 7,6 milhões de toneladas de carne bovina, o que pressupõe o abate de cerca de 21 milhões de animais. Dois terços da produção de carne bovina na Europa são provenientes do abate de vacas leiteiras em fim de "vida útil".
Espécies suína, avícolas, bovinas, são portanto criadas e abatidas em quantidades difíceis de imaginar. A industrialização de massa a todas as fases da "fileira" "desde a forquilha ao garfo" gera problemas de degradação da condição animal e humana cuja acuidade é apenas em pequena parte mitigada (ou disfarçada?) pelas regulamentações do "bem-estar animal". Cada uma das fases da produção gera problemas importantes. À saída das quintas, o transporte é uma delas (com perdas - animais mortos - não negligenciáveis). No que respeita ao abate, a própria massificação, aumentando exponencialmente o número de animais admitidos e abatidos por dia, torna impossível o tratamento "humano" dos animais. As dificuldades de recrutamento que os matadouros têm vindo a registar decorrem, segundo vários inquéritos, do carácter traumático das tarefas, por mais que a "humanização" fosse tentada (quando o é). Um inquérito recente (Maio de 2016) feito pelos serviços de inspecção do ministério da agricultura francês a todos os matadouros franceses, na sequência de vários escândalos de tratamentos bárbaros infligidos aos animais nos matadouros detectou a nível nacional, infracções "muito graves" às normas em cerca de 5% dos casos. Qualquer investigador sabe que essa constatação não passa da ponta do icebergue: o que aí vai por essa Europa do Atlântico ao Báltico é um problema cuja dimensão o torna inimaginável.
É-nos permitido formular uma hipótese: é justamente porque ele é inimaginável que o problema não "passa" na consciência pública: demasiado grande, demasiado complexo, demasiado terrível.
Os números respeitantes à morte de touros de lide na região taurina europeia (Sul de França, Espanha, Portugal) são difíceis de referenciar e as estimativas variam entre 6.000 e 30.000 animais por ano. Com cerca de 500 corridas formais por ano em Espanha (3.000 touros) e outros tantos festejos "informais"(um ou dois touros cada, entre 500 e 1.000 animais), acrescentando as 70 corridas francesas (420 animais) e 250 portuguesas (1500 touros), obtemos de facto perto de 6.000 touros / ano. Nada impede que, por prudência visto que as estatísticas são imperfeitas (entre outras omissões, os touros de substituição, "sobreros", um ou dois por corrida) aceitemos uma estimativa do dobro, ou seja 12.000 touros sacrificados por ano em toda a vasta região taurina europeia. O que ressalta de imediato ao olhar antropológico - e à atenção do leitor - é a extraordinária diferença de dimensão dos fenómenos: o abate industrial de animais cifra-se nas centenas de milhões, para os bovinos situa-se nas dezenas de milhões e para os touros de lide numa escassa dezena de milhares. Já vimos quais as consequências inevitáveis da massificação do abate em termos de crueldade para com os animais e de sofrimento para o pessoal: elas são incomensuráveis com a dimensão da morte dos touros de lide.
Como explicar então que seja precisamente este pequeníssimo número de animais sacrificados - se comparado com os números de animais abatidos na Europa - que concentra a agressividade e até o ódio das associações ditas de "defesa dos animais", cujas raízes se encontram, para nosso maior espanto, precisamente nos países da Europa do Norte, nos quais a realidade da condição animal é trágica, como sumariamente indicámos? Tal é a natureza do "enigma anti-taurino": a focalização do trauma do sofrimento animal num fenómeno ultra-minoritário quanto ao número de animais envolvidos: as corridas de touros. O que explica a cegueira dos anti-taurinismos ao fenómeno de massa, a sua incapacidade para abranger o problema no seu conjunto e a concentração obsessiva num ponto minúsculo dessa massa?
O inquérito tem que ser continuado.


 
Imagem: Picasso, série de touros, 1946-1947
 JRdS, Évora, 20 de Maio de 2016

7 comentários:

  1. Dr. José R. dos Santos, tenho para mim que o socialismo é uma forma feminina de organizar a sociedade.
    Se há alguma pertinência no que digo, então a Corrida de Toiros, pelo exemplo que dá, é obstáculo à prossecução de um projecto político!

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    1. Caro Senhor,
      Não estou mesmo a ver , nem socialismo = feminino, nem o resto...

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    2. Dr. José R. dos Santos, eu quis dizer que depois do 25 de Abril a legislação "empodera" a mulher, preterindo o homem. Tal lógica choca com a Festa de Toiros porque esta enaltece valores como o da masculinidade. Assim, percebe-se por que o universo de esquerda é avesso às lides tauromáquicas.
      Portanto, a sanha anti-taurina também e principalmente se explicará à luz da problemática do poder.

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  3. Muito obrigado pelas suas palavras. Vou tentando construir uma "teia" de análises e argumentos que por vezes vão buscar as coisas um pouco longe, em aparência, do cerne da questão. Mas é pela base, e por onde menos se espera, que devemos criticar os novos fundamentalismos. Não sei se teve a ocasião de ler o último texto (sobre a acusação de "barbárie"...) recorro à noção dos clássicos gregos de "Hybris". No próximo, retomo o problema do lado oposto, a "Diké", a moderação, a justiça, a regra... como na tauromaquia! Votos de um bom dia!

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